Perdida agora a indecência pura das mentiras mal contadas, fez-se do fogo eloqüente da vela, que teima em queimar, o brilho solitário da sala de jantar.
Ensandecida a mente brilhante que refuga qualquer normalidade de pensamento, extasiado o sujeito prejudicado pela escassez de luz do seu raciocínio, entregou-se ao primeiro murmúrio das senhoritas abandonadas no salão ao lado.
Chega de momices falsas – bradou uma voz rouca. Iniciou-se um burburinho e o primeiro cristal foi ao chão.
Uma queda rápida, um ruído seco e todas as luzes apagadas.
Nenhuma lágrima derramada, nenhum beijo roubado, por enquanto.
A agora perdida indecência pura das mentiras mal contadas gerava um pânico intencional e querido, porém ainda contido, retido voluntariamente no olhar de quem possuía o dom da visão noturna.
Era reter o incontrolável. Era o pânico desejado, volúvel àquele instante, e que se ia cristalizando a cada novo suspiro da respiração já ofegante no grande salão.
As senhoritas ao lado mudaram de local e ninguém mais estava sozinho.
Um sussurro, dois lábios, vários beijos!
Quem, em sã consciência, naquela casta sociedade, poderia imaginar que se iria concretizar uma cena tão dionisticamente bem desenhada?
A fluidez incessante dos encontros carnais era perfeitamente bem quista entre todos ali presentes.
A tradição, sempre imponente, trancafiava os desejos daqueles que se conheciam e se fingiam de distantes perante os costumes seculares.
Nunca, até aquele derradeiro momento tantos corpos se encontraram com tamanho furor, sem nenhum pudor.
Mãos não se fazendo de rogadas e completamente livres de qualquer falso preconceito viajavam por inúmeras curvas e peles.
A orquestra já havia parado de tocar há tempo e se juntara ao monte de carnes esparramados pelo salão... tocavam agora outros instrumentos.
Toda a festa rolou, literalmente, pela noite inteira e o último casal só foi desfeito nos primeiros raios do sol.
Alegre foi a noite onde a diversão imperou dignamente, reificada no anseio de se ver realizados tantos sonhos segredados.
Após o acontecimento nenhum comentário foi feito, era como se nada houvesse acontecido, nada que não fugisse aos padrões normais das festas da alta sociedade.
E desde aquela furtiva e inesquecível noite, não houve, sequer por breves instantes outro blecaute que possibilitasse aos nobres cidadãos a realização de outro esfuziante suruba.